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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Numa aldeia rural isolada, de dia mergulhada na calma e tranquilidade e de noite, submersa na mais profunda negrura e temor, cercada por uma floresta encantada, existia uma lenda.
Esta pequena aldeia tinha uma particularidade, no interior das casas havia pelo menos cinco ou seis espelhos, de qualquer tamanho, e de noite era posto um à porta do lado exterior de cada casa. Quem por ali passasse e não soubesse o nome da aldeia, tomá-la-ia por uma guarida de bruxas ou demónios. Apesar de tudo não o era.
            As pessoas que ali viviam eram honradas, vulgares, viviam do seu trabalho, e nunca saiam dali.
Dizia-se que por ali habitava um lobisomem que aterrorizava os aldeões e a própria aldeia durante a noite, destruindo tudo à procura de alimento e uivando como louco. A história dos espelhos entra agora. Se o lobisomem visse o seu reflexo no espelho, o lobo que levava dentro ficaria preso dentro desse espelho e o homem ficaria livre. Para acabar com a maldição de uma vez, seria necessário partir o espelho sem olhar para ele, para não correr o risco do lobo escapar. Daí os espelhos serem um repelente poderosíssimo contra ele. O lobisomem não ousava aproximar-se das casas e, muito menos entrar nelas. Alguns aldeões, antes do anoitecer, hora da recolhida, punham um cordeiro ou uma cabra presa perto do poço da praça para matar a fome do lobisomem e assim não forçar as suas casas, apesar de não poder. Se tu procuras uma noite bem dormida, este não é o local para ti. Sempre que se ouvia o seu horripilante uivar, as pessoas tremiam e gelavam, ficando paralisadas de pavor não ousando mexer-se sequer.
            Até que um dia, a curiosidade aliada à ingenuidade de um pequeno jovem de sete anos, tudo mudou. O pequeno, ao escutar os primeiros uivos mancharem a noite com sangue de cordeiro, esgueirou-se pela janela bem vedada e protegida, com um espelho na mão meio escondido atrás das costas, sem que nada nem ninguém soubesse.
Escapuliu-se em silêncio, como quem segue outro alguém em segredo. Espreitando pela esquina de uma casa, avistou a terrível e monstruosa besta saciar a sua fome. Então, os pés do rapazinho ficaram-lhe colados à terra, não podia movê-los mesmo tentando com toda a força. Num piscar de olhos, o lobisomem saltou do poço de pedra velha do meio do largo e, numa única aterragem perfeita, parou de pé numa figura custosa em frente ao miúdo que caiu de costas quebrando o espelho.
Não conseguia falar, respirar e muito menos mover-se. Isso facilitava a tarefa do lobisomem, cortar a carne tenra e macia de uma criancinha com os seus dentes que mais pareciam lâminas de facas bem afiadas, imaginando o sangue inocente e quente escorrer-lhe pelo queixo. Que delícia! Não podia haver manjar melhor que aquele.
            O monstro ergueu o braço para dar o golpe fatal observando a sua vítima bem nos olhos, mas algo o deteve. Baixou lentamente o braço e a cabeça ficando cabisbaixo, como que desanimado. O pêlo desapareceu, os olhos avermelhados, raiados de sangue e raiva fiaram castanhos, o focinho deu origem a uma cara de um homem novo e, por fim, a boca que outrora estivera cheia de dentes afiados e desalinhados, era agora uma boca normal de homem com dentes alinhados e absolutamente normais.
-Agora é a tua maldição… -disse o homem tanto contente como aliviado, correndo nu para a floresta encantada. O rapazinho ainda não se tinha em si. Os seus olhos, bem abertos pelo medo, reflectiram a imagem do lobo que agora ele levava dentro.
Regressou a casa pouco depois, mudado para sempre.
A partir dessa noite em diante, o jovem cumpria com o seu destino, a sua maldição, afastando-se dos espelhos como os vampiros se afastam de crucifixos ou igrejas.

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