Já não era a primeira vez, nem a segunda, muito
menos a terceira. Sempre se sentia assim quando algo corria mal. Aflito,
constrangido e preocupado, mas que por medo não revelava nada. Esperava que
tudo passasse milagrosamente ou se concertasse sem qualquer necessidade de
receio. Contudo, havia sempre aquela odiada altura em que teria de abrir a boca
e confessar, muito embora algumas vezes nem culpa tivesse. Enfim, uma tortura
que o atormentava, na realidade a sua vida resumia-se a um Cabo africano, e
tudo isso por três razões: tinha medo, era diferente e não tinha posses.
Bastava que a última fosse ao contrário para que tudo o resto fosse melhor,
pois poderia ser independente. Com a primeira já seria suficiente para alguns
constrangimentos e poucas aflições. Porém, no meio não estava a virtude, pois
ainda que fosse normal (segundo o que a sociedade designa como tal), isso não
seria solução para os seus issues.
Não era crente, não era politizado, muito menos
comprometido. Perto das pessoas certas era divertido, sincero e adorado;
exactamente o contrário quando perto das pessoas com quem partilhava a sua
vida. Um autentico inferno.
Opressão, insultos e um terrível ambiente de mau
estar permanente faziam dele, de certa forma, a pessoa que era. Um indivíduo
revoltado, com ideias incompreendidas embora astutas, resumindo: fora do padrão
social. Decidido e totalmente único. A culpa nem derivava dele, segundo os
livros de psicologia que lera nas aulas do 12º ano, ele era somente o reflexo
do entorno em que vivia e da educação que tivera. É natural, eu concordo
conhecendo a sua história. O que queria ele da vida?
Tranquilidade, independência e ocupação. Podia ser
péssimo em certas coisas, mau noutras e razoáveis em escassas, mas havia algo
em que ele era realmente bom, excelente, e era na arte. A desenhar era um
autentico mestre, foi ele quem me ensinou tudo o que sei a respeito disso. Só
lhe tenho a agradecer.
O
seu futuro estava comprometido com o seu entorno, capado, limitado e decidido
por outros. Com a sua queda artística não iria sobreviver e, depois de mais uma
noite de discussão familiar, ele tomou uma decisão. Uma big one. Daquelas que
mudam radicalmente a vida de uma pessoa. Durante a madrugada, com uma mala
feita e bem apertada, esgueirou-se pela janela do seu quarto, bem silencioso
como um rato, tão nervoso como receoso. Ser apanhado era uma máxima a evitar,
caso contrário seria morto… provavelmente. Sorrindo níveamente, correu com a
mala nos braços de mansinho até se afastar o suficiente da casa para empreender
um ritmo acelerado. Tudo aquilo era errado, confuso e espantosamente sonhador.
Mas para ele era o caminho para a liberdade, a verdadeira glória que o esperava
pacientemente. Este novo mundo que estava prestes a emergir era-lhe medonho,
mas a sua vontade titã de vencer, por uma vez, em parte embriagado pela subida
repentina de adrenalina, era o seu combustível. Com o bilhete de autocarro na
mão, aguardou o transporte sob um dos focos acessos da estação deserta. As
sombras lutavam entre si para crescerem à luz pálida.
O
rosto do rapaz, oculto pela penumbra do capuz da sua camisola, era enigmática,
nada transparecia. Pensativo, ou talvez apenas sóbrio, permanecia imóvel.
Provavelmente, na manhã próxima, dariam por sua falta, e com ausência de nota
ou carta explicativa, naturalmente pensariam tratar-se de um passeio matinal.
Ele assim preferia. Fazê-los meditar nos seus actos, nas atitudes que tiveram
para com ele, as palavras e a falta do mais importante numa família. Confiava
em conseguir levar o seu plano a cabo até à fronteira, daí traçaria o seu rumo
e, desse mesmo ponto geográfico, já não haveria regresso possível. Tinha
sonhos, vontades e curiosidade, algum dinheiro e idade para tal. E disso se
tratava, explorar um mundo inteiro, um planeta repleto de coisas certamente
maravilhosas, seguramente apaixonantes, pessoas embriagantes das quais aprender
e nunca fartar, entender a essência das culturas, um tão vasto campo de
possibilidades que até eu perco facilmente a conta.
O
autocarro surgiu de súbito, trazendo a consciência e total atenção do rapaz de
volta à realidade. Num brusco solavanco, parou e as portas abriram.
Ainda naquele impasse, deixar o passado atrás e
caminhar frente a um futuro claro e desconhecido, ou deixar o passado ser e
decidir o futuro incerto, as pessoas que desciam não reparavam no espectro de
alma e, agitadas, resolviam their lives. Num curto espaço de tempo, o autocarro
esvaziou por completo. Aparentemente, e até ao momento, ele era o único que
iria subir àquele veículo pesado. O frio apertava o desconforto aumentava e
quando um novo motorista assumiu o volante, todas as condicionantes o obrigaram
a decidir-se em fracções de segundo. Escolhendo o último banco, confortável e
quentinho, admirou um corredor interminável de lugares despovoados. Como
explicar?
Estava eu a acabar de atravessar a entrada quando
as portas automáticas se iam fechando. Por um pêlo!
Curioso e desconfiado, sentei-me num dos bancos do
meio. Não era difícil notar no único passageiro do fundo. Sentei-me e a viajem
iniciou. Para nossa sorte o interior era reconfortante. Contudo, o rapaz do
fundo intrigava-me. Tinha o capuz posto e luzia um olhar louco de ausência.
Faltava-me a coragem para o interpelar, por isso, cada pergunta, cada possível
diálogo era imediatamente esquecido.
Para minha grande surpresa, o misterioso rapaz veio
ter comigo. Não dei por ele, talvez tenha adormecido uns minutos, ou talvez…
Perguntou-me para onde eu ia: algures do outro
lado.
E, empatia ou não, conectámos. Falámos horas,
partilhámos pensamentos, ideologias e experiências. A sua vida para um
aspirante produtor de cinema teria boa receptividade. Modos de vida distintos,
conceitos simples como liberdade negados, um conjunto deveras interessante de
admirar. A fronteira estava ao alcance do nada, iríamos sair na paragem
seguinte e, ambos empreenderíamos uma grande adventure cheia disso mesmo.
Confirmo, é algo de que não me irei arrepender jamais e que, mais tarde, terei
muito gosto em contar detalhadamente.
Decidi
acompanhá-lo. Que tinha a perder? Antes pelo contrário! A manhã já alta e
soleada, trazia consigo essa sensação que o rapaz procurava e parecia não ter
suficiente. Eu contemplava-o, deste ponto, a perspectiva, a luz e a pose eram
perfeitas para a polaróide actuar. Acho que nunca tinha conhecido alguém com
asas tão grandes, com tanta sede daquilo. O seu riso contagiava-me e eu ria sem
saber. O seu cabelo desalinhado e curto, agora a descoberto, açoitado pela
brisa morna, transmitia uma sensação de suavidade imensa. Os olhos claros
avelãs, absorviam tudo quanto viam. Sinto-me lisonjeado e lucky por estar com
alguém tão cheio de vida, agora liberta por fim. Não tardou a que nos
hospedássemos numa pensão e, a meias era o ideal. As semanas seguintes foram
estupendas. Percorremos o país, até passar três ou quatro fronteiras, e nada
detinha a vontade do rapaz sedento. Barcelona, Londres, Paris, eram só alguns
lugares por onde pisámos. Todo e qualquer tempo que estivera com ele, nada me
tinha dado uma pista sequer do seu segredo, o porquê de ser diferente. O seu
ritmo era frenético!
Sem notícias de casa, obvias razões, o seu talento
estendia-se pela Europa fora. Perdi-o em Itália. Creio que, apesar de best
friends, tivemos de tomar rumos diferentes, presumo. Ele seguia o mundo e o
mundo parecia sorrir-lhe. Sempre, de alguma forma que me escapa, conseguia
sobreviver passasse por onde o vento o levasse. Deveras admirável. Ia vendendo
o seu talento e vivendo a sua vidinha. Por fim, algo do qual pudesse
orgulhar-se e pudesse afirmar que foi ele. Não obrigado. E não falo do gosto!
Creio que, por mais tentadora que toda essa idílica viagem aparentasse e fosse,
eu não seria capaz. É necessário ter duas doses de ingenuidade e uma de
coragem. Ou talvez sorte, ou talvez sorte derivada disso… não sei.
Ao que parece, os artistas autênticos têm o destino
traçado, algo que, sem excepção, é comum entre todos.
Uns
anos mais tarde, recebi uma inesperada carta. Adornada com vários selos,
desejei não a ter aberto. Aquele pedaço de papel impresso à mão, dobrado,
desgarrava-me o coração. Era dele. Nela, escrita lia qual fora a sua diferença,
a que nunca soube. Embora a vida lhe fosse dando asas, e tivesse feito o que
quis sem ninguém a comandá-lo, criticá-lo ou apavorar, não tinha um dos
ingredientes mais importantes de uma vida humana. Uma vida daquelas, tão
invejada por mim…
Sinto lástima de mim por não ter reparado o quanto
ele me amava. Agora que não havia remédio, qualquer volta atrás, pois no PS
outro alguém escrevera que o meu rapaz tinha jump down de uma ponte de Roma.
Grécia…
Consigo
adivinhar os motivos, o sofrimento, tudo até ao arrepio gelado percorrendo a
minha espinha. Agora, não podendo evitar, culpo-me pela cegueira de outrora. A
sua fotografia tirada da antiga polaróide, foi-me ter às mãos trémulas, depois
de remexer um caixote de título “viagem inesquecível”. A saudade invade-me, a
culpa cresce e a tristeza se alimenta da ausência do rapaz. Actualmente, olho
para o mundo de forma diferente, sei desenhar e tudo isso o devo a ele. Por
isso, cada vez que miro o azul céu, choro. Noah, o rapaz sonhador…